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2014 - 35 - 722 - DOMINGUEIRA - CONSELHOS E CONFERÊNCIAS DE SAÚDE-27-4-2014

1.  PRIMEIRA PÁGINA - TEXTOS DE GILSON CARVALHO
 
CONSELHOS E CONFERÊNCIAS DE SAÚDE CUMPRIRAM SUA MISSÃO NOS 25 ANOS DE SUS?
 
Gilson Carvalho
 
Neste ano comemoramos 25 anos de SUS. Oficialmente ficou sacramentado na CF a saúde como direito de todos e dever do Estado brasileiro. Seu objetivo principal é o de garantir o tudo para todos, juntando integralidade com universalidade. As diretrizes constitucionais foram centradas em apenas três âncoras: integralidade, descentralização e participação da comunidade.
Como se concretizou a Participação da Comunidade na saúde nestes 25 anos? Conselhos e Conferências, sua manifestação prática, como caminharam e onde estão 25 anos depois?
Primeiro pensar que o SUS, em especial a participação da comunidade, foram gestados e se concretizaram bem antes da CF.  Todas as experiências públicas com primeiros cuidados com saúde (SESP, PIASS, APS deAlma Ata, Movimento Municipalista de Saúde etc...) partiram do pressuposto e ação de que a presença na gestão dos cidadãos usuários, era essencial para a saúde.
Assim foi, mais recentemente, nos embriões de SUS como as AIS (Ações Integradas de Saúde) em 1983 e SUDS (Sistemas Integrados e Descentralizados de Saúde) em 1987. Foi o condicionamento da transferência de recursos federais a Estados e Municípios, acontecido nas AIS, foi capaz de mobilizar tanta gente na discussão da proposta SUS. Assim se explicam os 5 mil participantes da VIII Conferência Nacional de Saúde.
Apostamos todas as fichas que, se trouxéssemos para dentro do sistema, para ajudar nagestão, os cidadãos usuários, o sistema de saúde seria arejado e muito maisefetivo. Chegamos a imaginar que iria acontecer a gestão quadripartite comoestá sacramentada na CF. 194. A idéia motora é de que devemos ter o cidadãodentro do “parlamento” da saúde com seu duplo papel de propor e controlar ao modo que deveria ser o legislativo brasileiro.
Conselhos e Conferências não como um quarto poder, mas um  órgão público (órgão da administração direta), um braço do executivo, mais perto e, hipoteticamente, sensível aos anseios e reclamos dos cidadãos usuários. Tivemos sucessos neste caminhar. Mas, só iremos melhorar e universalizar este sucesso quando corrigirmos inúmeras situações mal conduzidas e indutoras de erros cada vez mais graves.
Elogios todos fazem. Elogios desmensurados também são feitos por ideólogos teóricos que nunca foram participar de reuniões de conselhos e conferências. Não viram odesastre de muitas práticas neste dois fóruns por falta de conhecimento e prática. A prática pífia, desabonando a filosofia/ideologia magistral!
Neste texto quero fazer o “serviço sujo” de apontar erros que devem e podem ser corrigidos para que os conselhos e conferências de saúde sejam para o sistema o que imaginamos. Posição antipática, assumida por poucos. Só faço uma diferença como muitos outros: mostro erros e discuto soluções e propostas e me empenho para que aconteçam.  Acredito que a participação da comunidade, tanto no cuidado quanto na gestão é essencial ao sistema de saúde.
Vamos aos nós do problema:
 
Centrou-se a formação e funcionamento dos conselhos e conferências de saúde na defesa dos aspectos filosóficos e ideológicos. Perdeu-se o foco legal operacional, sob a insubstituível e necessária  luzideológica, de trabalhar no plano de saúde e seu controle. 25 anos depois quantos conselhos entendem, contribuem, analisam, avaliam e aprovam o plano de saúde? Quantos fazem isto e o controle eficiente?
 
Adotou-se a nomenclatura totalmente inadequada de “controle social” truncada, pelo conceito sociológico e ilegal segundo a legislação do SUS. O nome equivocado indicou o privilegiamento do controle e esqueceu-se do aspecto propositivo. Deixou-se de contemplar, com destaque, as duas funções legais como determina a legislação, implícita e enfaticamente.
 
O endeusamento errado de controle social foi tão exagerado que hoje para muitos conselhos e conselheiros se personificou o termo: “o Controle Social decidiu, deliberou, vai punir, vai ser mandado para fiscalizar” etc. Controle social jamais pode assumir o lugar dos conselhos e conselheiros e ser nominado como substitutivo personificado de quem deve e pode exercê-lo: os conselheiros.
 
Ao assumir como principal e única a função controle, perdeu-se a função propositiva de interferir nos planos de saúde tanto fazendo proposições, como aprovando-os. Perdeu-se de ser pró-ativo com responsabilidades na construção do direito pleno à saúde, como ator principal, sujeito histórico e não apenas conduzido por terceiros que, depois, terão que ser controlados e fiscalizados.
 
Nada ou pouco se fez, a não ser pontualmente, para definir e consolidar os processos e rotinas de contribuição e análise dos planos. Nem foi feito o mesmo para efetivar seu acompanhamento e controle, preceitos constitucionais (hoje não mais explícitos nestes termos).
 
As duas funções, proposição e controle,  vem sendo feitas, salvo exceções, sofrivelmente e na minoria dos conselhos. Muitas vezes apenas de maneira formal sem nenhuma repercussão objetiva e prática. Nem no antes, nem no durante, nem no depois.
 
Ficamos na periferia do preceito legal discutindo aspectos filosóficos, políticos eideológicos do “controle social”, Deixamos para último plano, ou nunca focamos, nos aspectos filosóficos, políticos e ideológicos da dupla missão essencial: proposição e controle. Tem-se que estar objetivamente preparado para executá-la.
 
Nos perdemos nos aspectos “político partidários” de disputa de poder dentro dos conselhos, através da representação dos segmentos. Consequentemente, pouco nos sobrou de tempo para o essencial. Muitas vezes passamos uma mensagem ruim eerrada: prevalece o partidário que defende a preponderância da parte, contra o todo. Falo em todos os “partidos” (o que não é do todo, mas da parte): políticos, religiosos, acadêmicos, de prestadores, de profissionais, de doentes e de pessoas com deficiência. Em vários conselhos dominam os grupos dos mais organizados  e/ou mais espertos.
 
Estou cansado de ouvir que os conselheiros todos podem falar. É só pedir a palavra. Depois o anúncio:  “e na palavra do fulano encerram-se as inscrições!” Claro que todos podem e devem falar, mas dentro das regras democraticamente definidas. Esquecem-se que deve ter um rito matematicamente ligado ao tempo de reunião. Se há meia hora para discussão de determinado tema,  tempo de cinco minutos por intervenção, este só pode ser dado a seis pessoas e não se deixar livre a inscrição... o defender este democratismo avesso parece que a intenção sejamesma a de fugir da essência da proposição e controle.
 
Não se pode deixar correr livre uma reunião que tem tarefas a fazer e hora marcada para início e término. Acaba não sobrando tempo para as discussões essenciais, substantivas. Quando começam estas avaliações e discussões, todos já estão cansados. Não precisa divagar longe. Analise-se o quórum no momento de apresentação e discussão da análise financeira pela Comissão de Orçamento eFinanças! Parece hora do recreio... quase ninguém na reunião!...  
 
Democracia a ser defendida é onde se dá o direito de todos falarem democrática e disciplinadamente. Mas, não é aquela apenas travestida de democracia que quase sempre, desemboca no democratismo anárquico que, sob o pretexto de que todos podem falar, só falem alguns, sempre os mesmos, repetidamente!
 
Reuniões dos conselhos acabam perdidas na periferia das questões no pouco tempo que lhes resta depois do início atrasado, da leitura e rediscussão de atas (com pedidos de explicação dos que estiveram ausentes!!!) , do prolongamento do tempo deavisos, das breves comunicações (transformadas em longas e sempre com pedido que conste em ata para depois mostrar para sua turma...), das questões de ordem etc.  Sobra quase nada do tempo para a discussão e aprovação do essencial: proposição e controle.
 
Vimos na composição dos conselhos o segmento dos usuários valorizadíssimo no discurso, mas, na prática,  invadido e contaminado pela presença de outros segmentos que usurpam-lhe os postos. Destaque-se a ocupação dos postos de usuários por  servidores da saúde ou servidores públicos em geral. Todos eles investidos em representações de usuários por sermos todosusuários. Se assim fosse o raciocínio linear, ficaria justificada a presença, na mesma representação de usuários, da esposa e filhos do prefeito ou governador, ou dos próprios, todos sabidamente usuários! Também o governo usou deste artifício colocando pessoas suas no segmento usuário, com vínculo, dependência econômica e comunhão de interesses com o governo (imoral no Brasil e também ilegal em São Paulo). De quem deveria vir o exemplo (trabalhadores e governo) vem o mau exemplo de que seja lícito manipular.
 
Nesta representação construiu-se a farsa de colocar governo e prestadores no mesmo segmento ao arrepio da CF e da Lei, sob pretexto de que ambos eram prestadores!!!!! No SUS governo é governo e prestador é prestador, com seusespaços próprios e sua representação individualmente definida e distinta, como expresso na Constituição Federal. Um é o regulador, controlador e fiscalizador e outro é o regulado, controlado e fiscalizado.
 
Em que se transformaram nossas conferências de saúde? Tínhamos sonhos, ideais quando iniciamos a discussão de colocá-las na Lei de Saúde concretizando preceito constitucional da Participação da Comunidade. Fomos fundo criando uma grande corrente de mobilização popular começando pelas pré-conferências de bairros, distritos, municípios, regiões, estados e a nacional. Sonhávamos cumprir o preceito de colocar a centralidade da saúde no cidadão, individual e coletivamente. Quantos erros acumulados. Falta de propósito e perda do foco. Uma disputa de “partidos” e de escolha de quem vai a Brasilia e que segmento consegue sufocar o outro, valendo aí toda e qualquer contaminação. As cartilhas e palavras de ordens de segmentos dominantes (pessoas?) não podem ser evidências do espírito democrático de liberdade e igualdade. Não foram paramelhor exercício da “proposição e controle” constitucionais e legais! Se o processo é eivado de erros que se acumulam a cada conferência, consequentemente os resultados são pífios e, rotineiramente, desconsiderados na prática. Seupapel, distorcido, muitas vezes se encerra nela mesma.
 
Muitas vezes predomina a prática do democratismo anárquico onde se defende o direito de falar, sem regras, sem disciplina de horários, em prejuízo da democracia cidadã, que tem regras. Definir regras democraticamente. Aprovar regras. Cumprir regras. Se elas precisarem ser mudadas não só podem, como devem  na sequência democrática da qual não se deve abrir mão: definir, aprovar e cumprir.
 
Finalmente uma antecipação. Julga-se que todos que apontam erros, desacertos, descaminhos, sejam contra a participação da comunidade e inimigos da democracia e da pátria. Inclusive antecipo a avaliação pela qual passarei!...
 
....
 
Poderia aqui continuar fazendo minhas anotações decepcionadas daquilo que sonhamos e não conseguimos. O que desvirtuou-se.
Sempre consertar é mais complicado e difícil do que começar certo. Primeiro tem-se que desmontar o errado para depois reconstruir.
Se falo em decepções é necessário entender que elas têm um conceito separado ediferente da desesperança. Continuo esperançoso e lutando para que Conselhos e conferências assumam o papel legal que é o dos sonhos, desejos e de cumprimento dos objetivos, funções, princípios e diretrizes do SUS.
A essência de sua missão é e continua sendo, a de participar da gestão quadripartite do SUS o que significa fundarmo-nos na essência e sairmos da periferia. Fazer PROPOSIÇÃO E CONTROLE. De manhã. De tarde. De noite
Precisamos investir nesta habilidade de saber planejar e controlar. Não será com questões fosfóricas de participação que conseguiremos fazer estas ações da melhor maneira.
Nem nos cursos e manuais que tenho visto, nem em processos de educação permanente dos Conselhos têm sido apresentados modelos de como na prática se contribuir com o Plano de saúde, acompanhá-lo e controlar sua execução. Fazer a associação essencial com as leis orçamentárias em conteúdo e prazos legais. O mesmo sediga do acompanhamento da execução  orçamentária, a única maneira de avaliar qual política de saúde estásendo executada.
O caminho sempre foi um só: aprender a fazer e acompanhar planejamento e finanças, e também resultados objetivos.
A ferramenta é educação permanente objetiva e menos pífia do que ocorre hoje.Educação permanente dos que já estão conselheiros e dos futuros que deverãoestar sendo preparados nos conselhos gestores locais e de outros celeiros.
Nossa prática sempre foi de colocar o dedo nas feridas e ao mesmo tempo mostrar caminhos. O primeiro caminho é sempre reconhecer o erro. Reconhecer que se vai mal.
Ninguém tem gana e garra de mudar aquilo de que está convicto de que esteja às mil maravilhas.
Cobrir-se dos trapos da  humildade.
Identificar e reconhecer erros, como primeiro passo para sair deles, construindo o melhor!
Se nós quisermos, vamos melhorar.
 
2.  SEGUNDA PÁGINA - TEXTOS DE OPINIÃO DE TERCEIROS
 
CONFERÊNCIAS DE SAÚDE NA ENCRUZILHADA
 
FLAVIO GOULART (Doutor em Saúde Pública; Membro Fundador do CONASEMS; Coordenador dos Laboratórios de Inovação em Participação Social – OPAS Brasil / CNS)
Nem tudo são flores…
Um grande evento vai agitar Brasília em 2015 – e já vem sendo preparado: a 15ª Conferência Nacional de Saúde.
As conferências de saúde fazem, sem dúvida, parte de um processo histórico de ausculta à sociedade na área da saúde. É um campo em que o SUS tem muitas lições a oferecer, mas é preciso lembrar que não são poucos os questionamentos de sua eficácia na geração de mudanças reais na política desaúde.
Por exemplo, há tendências preocupantes hoje no cenário da participação social no Brasil, do qual decorrem certas expectativas, por exemplo, de que em tais instrumentos residiria, de fato e de direito, um quarto poder; de que tais eventos constituem amplos fóruns de debates ideológicos, com a formação de blocos partidários e decisões por voto, não pelo consenso, além da extração corporativa das pessoas envolvidas, longe do voluntariado, dos interessados legítimos em certas questões e da defesa dos interesses coletivos.
As duas últimas Conferências Nacionais de Saúde, realizadas em 2007 e 2011 respectivamente, foram dramaticamente marcadas pelo nível depolarização entre os participantes. Foram produzidos debates de grande tensão, que se arrastavam pelas madrugadas, com resultados de legitimidade duvidosa, pois no final votavam e aprovavam propostas os mais resistentes ao sono ou os militantes mais ardorosos, não necessariamente os portadores de interesses legítimos. O resultado foi a reiteração e a redundância, com emissão de propostas miraculosas e infinitamente abrangentes, na verdade, muitas já contempladas nas leis e normas em vigor.
Outro aspecto a considerar é que um evento deste tipo deve custar aos cofres públicos da saúde, proverbialmente esvaziados, algumas dezenas de milhões de reais. Afinal são alguns milhares de pessoas a serem transportadas, abrigadas e alimentadas na Capital Federal, além do aluguel de espaço para o evento, coisas que em Brasília têm preços astronômicos. Daí deriva a questão: haveria maneiras mais racionais eficazes de se obter realcontribuição das conferências de saúde para o aprimoramento e a qualificação do setor saúde no Brasil?
Algumas propostas existem no cenário. O foco das conferências deveria se concentrar no exercício de visão estratégica, não no cotidiano da gestão, para formular guias para a ação de longo prazo. Os trabalhos em grupos pequenos deveriam ser o motor desses eventos, mas ficam em segundo plano, perdendo, de longe, para as agitadas plenárias, com suas votações pela madrugada e para as indefectíveis reuniões informais, “de corredor”, onde a verdadeira pauta é realmente formada e “recomendada” à militância. Isso certamente faz parte da democracia, mas, afinal, é preciso questionar se conferências de saúde devem ser mais do que meras festas cívicas, comícios ou processos partidários e parlamentares.
As conferências de saúde deveriam se dedicar, também, à avaliação das políticas em curso, longe do “furor deliberativo” que lhes é peculiar. Não seria nada mal colocar a tecnologia de informações disponível, algo que é bastante expressivo na saúde, a serviço das conferências, estabelecendo, por exemplo, pontos de votação eletrônica, mediante identificação digital, para determinados temas. O ideal seria, ainda, a criação de espaços virtuais diversos, de amplo acesso, nos quais as deliberações fossem acompanhadas ao longo do tempo, inclusive para subsidiar a conferência seguinte, pois a sensação que tais eventos passam é a de que ali tudo está sempre começando do zero.
A participação da sociedade na saúde é coisa muito séria, muito além do amadorismo, do voluntarismo e da improvisação. As Conferências de Saúde, nas três esferas federativas, em uma estimativa modesta, devem estarreunindo a cada quatro anos mais de um milhão de pessoas, em todo o Brasil. É preciso deixar de lado os preconceitos e buscar novos conhecimentos da teoria das comunicações, da teoria da gestão pública e das tecnologias da informação para dinamizar, modernizar e tornar mais efetivo tal processo.
Assim ao invés de se fazer o que sempre se fez ou fazer cada vez mais as mesmas coisas, certamente seria possível fazer melhor, produzir mais resultados, fazer com que as decisões tomadas em uma conferência de saúde possam melhorar, de fato, as práticas políticas nacionais e a própria situação de saúde da população. A melhoria da saúde dos brasileiros e o fortalecimento do SUS exigem tal esforço.
E não custa também lembrar, embora de passagem: em uma conferência de saúde (e também nos conselhos), onde estariam contemplados os portadores de interesses mais pontuais? Por exemplo, de pais de crianças com deficiência, de portadores de doenças raras. Enfim daqueles que não estão filiados (ou não têm acesso) aos organismos formais de representação que jáexistem no país e que constituem o único degrau possível para se chegar á participação formal, aquela consagrada na lei 8142/90. Não existiria nada de novo em tal cenário? As experiências internacionais, em países tão ou mais democráticos que o Brasil mostram que sim.
 
Ilusões participativas
 
Na derradeira ConferênciaNacional de Saúde, a 14ª, realizada em 2011, quase quatro mil pessoas se aglomeraram no grande Centro de Convenções de Brasília e ali contagiaram os que por lá estiveram graças a seu entusiasmo e também ao caráter festivo de tudo o que acontecia lá. Aliás, festa é bom; festa em torno da saúde, melhor ainda – isso não é nenhum problema.
Mas para além da festa, no caso em foco, o manifesto ou carta derivado do evento, sem deixar de reconhecer que texto refletiu um estado de espírito a legítimo e não deixou de trazer algumas boas idéias relativas à saúde dos brasileiros, trouxe à luz algumas ilusões e enganos...
Para começar, a tônica é dada por determinadas palavras de ordem, repetidas á exaustão. Na 14ª foram: Todos usam o SUS: SUS na Seguridade Social! Política Pública, Patrimônio do Povo Brasileiro Acesso e Acolhimento com Qualidade: um desafio para o SUS. Como slogan, foi sem dúvida algo extenso e redundante, pois quem aspira tantas coisas corre o risco de perder o foco e não ter clareza sobre o que quer e o que se faz necessário. Qualquer espectador mais crítico, principalmente se não fizer parte da militância, mas sim da cidadania como um todo, gostaria de ver em evento de tal magnitude propostas coerentes e factíveis. Mas será que elas, de fato, ali foram geradas?
Com efeito, não caberia, em uma Conferência de Saúde, apenas defender o que já está consagrado na Constituição e nas Leis do SUS, aspectos reiterados com insistência, se não com exaustividade. Coisas que cada pá de cimento do concreto do Eixo Monumental já conhece de cor... Melhor do que isso, só se as palavras de ordem transmutassem em políticas concretas.
Na 14ª Conferência muito se disse, também, sobre a defesa de um “SUS real” (atenção, não é “surreal”...). Enquanto este não se anunciava, o que se assistiu foi um desfile de afirmativas bombásticas, defendendo propostas do tipo: desenvolvimento sustentável; um projeto de Nação baseado na soberania; crescimento sustentado da economia; fortalecimento da base produtiva e tecnológica para diminuir a dependência externa; valorização do trabalho; redistribuição da renda; garantia dos direitos constitucionais à alimentação adequada, ao emprego, à moradia, à educação, ao acesso a terra, ao saneamento, ao esporte e lazer, à cultura, à segurança pública, à segurança alimentar e nutricional. E, de quebra, a consolidação da democracia... Alguém seria contra algo assim?
Tem um tema que parece ser particularmente querido dos participantes da Conferência. Aliás, não só desta, recente, como das demais e também das pautas cotidianas dos conselhos de saúde pelo Brasil a fora. Trata-se da pujante presença de questões ligadas ao mundo do trabalho. São tópicos diversificados, como saúde do trabalhador, redução de carga horária, melhores oportunidades de progressão, planos de carreira, fim da precarização do trabalho etc. Isso, por um lado, é um avanço, pois não seria possível conceber a saúde funcionando perfeitamente com seus trabalhadores abandonados e vilipendiados. Mas há também o reverso da medalha, qual seja que isso traduza apenas a ação de um mais um tipo específico de militância, a dos sindicalistas da saúde, nas atividades das conferências e outros fóruns de participação social. Não custa nada indagar sobre o possível (des)balanceamento entre o que é aspiração de segmentos mais organizados e militantes e o desejo e a necessidade, muitas vezes ocultos, do restante da sociedade.
Aqui não custaria lembrar: os usuários querem ver é o SUS funcionando, não importa como isso é feito. Para o cidadão comum, a estabilidade no emprego – item tão caro à militância laboral – talvez valha menos que o compromisso de quem pode ser demitido se não fizer a coisa certa. O fato é que parece existir uma cortina de fumaça que impede a boa visibilidade dos argumentos. Questão que não se cala, entretanto, é a da existência de possibilidades de mudanças e avanços em relação a concepções mais radicais relativas à coisa pública, dentro do padrão legal “8112/8666”, como já acontece em alguns estados governados, não pelo PSDB, mas pelo próprio PT, como Bahia e Sergipe.
A Carta elaborada pelos militantes em 2011 se encerra de modo incisivo, ao exigir simplesmente a implantação de todas as deliberações da 14ª Conferência Nacional de Saúde. Já lemos isso nos muros parisienses, em 1968: sejamos realistas, exijamos o impossível! Como palavra de ordem, é perfeita, mas como possibilidade concreta de ação, os quinhentos são outros...
Para encerrar, então... É sobre um “SUS possível”, diferente do “SUS real”, que os militantes presentes nas conferências de saúde deveriam concentrar suas energias? A construção está aí mal pára de pé, indicando que muito ainda é preciso renovar e reforçar suas estruturas. Mas é preciso escapar da redundância e da vacuidade.
 
Uma lógica militante
 
Se há uma coisa que nós, da saúde, não podemos nos queixar, atualmente, é a da falta de militância em nossas fileiras. Isso em si é um fato auspicioso, que nos remete, por exemplo, a exemplos históricos espetaculares, como a recente Primavera Árabe ou a remota Comuna de Paris, sem falar dos movimentos de rua de Junho de 2013  e das lutas históricas pelo petróleo e pelas Diretas-já, entre outras.
Mas nem tudo é assim tão brilhante neste terreno. O outro lado da moeda pode resultar de uma lógica de militância que divide o mundo em pedaços e, a partir daí, confunde o mundo, em sua totalidade, com cada pedacinho que se cria a partir dele... Tal lógica, também, não costuma admitir meios-termos, funcionando muito na base do preto no branco e do oito ou oitenta. Não costuma ver, ainda, o outro lado que existe em quase tudo que seja obra humana, apesar de exemplos históricos que saltam à vista. Aliás, história, para os militantes típicos, é algo que deve ser considerado apenas se mostrar argumentos favoráveis àquilo pelo que se milita; caso contrário, passa por mero produto de manipulação de militantes contrários ou, de forma mais genérica,deles, “dos homens” – espécie de entidade mítica demonizada no mundo militante.
Os militantes da saúde, por exemplo, acreditam que a Reforma Sanitária brasileira foi pura obra de uma militância derivada dos movimentos sociais, dos trabalhadores, das academias – geralmente nesta ordem. Pensando assim ignoram, em primeiro lugar, o peso interno destes diversos fatores e também seu significado. O que a sociedade brasileira sempre quis, de forma, aliás, muito justa e natural, foi que melhorassem suas condições de acesso à saúde e seu próprio status sanitário. Se isso se daria por via da simples unificação do entulho anteriormente existente já é outra conversa. Fica de fora da equação militante, também, o fato de que já havia no seio da máquina pública, seja do INAMPS, seja do Ministério da Saúde, grupamentos técnicos que maquinavam uma reforma começando por dentro das instituições, o que resultou, afinal, nas primeiras medidas que deram origem ao SUS, através das Ações Integradas de Saúde entre INAMPS e MS, ainda no início dos anos 1980. As contribuições do movimento municipalista de saúde, encabeçado por gestores de saúde (outra figura demonizada), então, nem pensar... O saudoso Carlos Gentile de Mello, que de dentro da máquina monstruosa do INAMPS foi capaz de antecipar tantas coisas que hoje estão na Constituição e nas leis orgânicas, nos ilumine o caminho, em busca de certas verdades históricas.
As Conferências Nacionais de Saúde constituem, de modo geral, a demonstração da pujança da lógica militante. Se olharmos seus documentos finais podemos ver que as preocupações com a saúde dos brasileiros não deixam de marcar presença, indicando, porém, um a um, seus beneficiários: mulheres, crianças, idosos, população negra, população indígena, comunidades quilombolas, populações do campo e da floresta, ribeirinha, LGBT, pessoas em situação de rua, pessoas com deficiências, patologias e necessidades
O que se pode deduzir de tais fatos, é que muitos dos eventos recentes da área da saúde tiveram teve sua tônica marcada pela participaçãodiferenciada de grupos militantes, de diversas causas, colorações, religiosidades, orientações. Isso pode ser bom, por um lado, mas surge daí,porém, um enorme equívoco: a suposição de que se somarmos todas as suas categorias de indivíduos, como na lista acima, teremos como resultado nada mais, nada menos, que a totalidade da sociedade brasileira.
O problema é, mais uma vez, a perda de foco. Quem tem muitos objetivos dispersos pode não chegar a nenhumdeles, da mesma forma que, para quem não sabe aonde vai qualquer caminho serve, como já dizia um personagem de Alice no País das Maravilhas.
Afinal, tanta especificação não poderia, com vantagens, ser generalizada mediante uma expressão como os excluídos, os sem saúde? Generalização nem sempre significa dispersão. Até porque existem pessoas – e muitas! – que não pertencem a nenhum dos segmentos referidos e que também querem ter melhor acesso à saúde e a outros benefícios sociais. E afinal, saúde não seria direito de todos?
O resultado mais imediato disso, traduzido pelas demandas numerosas que cada conferência de saúde produz (centenas, ou até milhares) é a demanda de políticas específicas para cada grupo, para cada condição. Um exemplo disso (só o fato de citá-lo aqui certamente vá me render ataques de todo tipo) é o da famosa Política de Saúde para a População Afrodescendente (se é que este qualificativo já não foi substituído por outro mais correto politicamente...). Isso significaria a necessidade de uma política específica para abranger, por exemplo, a anemiafalciforme e a hipertensão arterial, que no referido grupo tem especial gravidade?
Mas afinal já não existem políticas nacionais relativamente bem sucedidas para hipertensão e distúrbios hematológicos? Não! É preciso mais, dizem os militantes da causa. O resultado mais imediato é, mais outra vez, a perda de foco. E, de quebra, a duplicidade e a dispersão de recursos, problemas que, lamentavelmente, já fazem parte da (triste) paisagem da saúde em nosso País.
Realmente, é dura a vida do militante, por ter que enfrentar, quase sempre, enormes dificuldades para converter a simpatia do público em recursos e mobilização. O resultado é que os ativistas buscam superar tais dificuldades mediante a concessão da maior materialidade possível ao que reivindicam. Para eles aprovar uma leizinha ésinônimo concreto de vitória. E eu arremato: se não for nem mesmo uma leizinha, que seja pelo menos um punhado de afirmativas, disputadas a cada vírgula, em um longo relatório de reivindicações de conferências de saúde, no qual outras dezenas ou centenas de pessoas igualmente militantes, de causas diversas, também colocaram suas necessidades e requisições.
Não nos custaria nada exercitar o bom senso e praticá-lo para além das fronteiras do mero pensamento desejoso. Embora corra o risco de ser hostilizado publicamente, como já o fui, não desperdiço a chance de questionar: será que é isso mesmo? Não haverá melhores estratégias de fazer a saúde avançar no SUS realmente existente e possível, não naquele romântica e desinformadamente desejado pelos militantes das diversas causas? Eu creio firmemente que a resposta é afirmativa. Mas para viabilizá-la seria preciso uma consciência da necessidade coletiva, não de grupos, por mais vulneráveis ou articulados que sejam. Fundamentalmente, temos que inserir alógica militante numa lógica mais ampla, a do interesse coletivo. É um longo caminho...
 
Síntese
 
O processo de participação em saúde no Brasil é ainda uma construção inacabada e frágil, sendo o arejamento e a ampliação das discussões uma tarefa essencial, mesmo levando-se em conta que o País tem história acumulada neste campo, com alguns erros e muitos acertos. É óbvio que o processo precisa ser aprimorado, e nisso estão implícitas a experimentação de novas fórmulas e, por conseqüência, mudanças, sem que isto resulte em ilegalidade ou no aviltamento de conquistas sociais, como alguns partidários de teorias conspiratórias costumam apregoar.
Assim, se há avanços, há também dilemas não resolvidos, por exemplo, a promoção de falsas expectativas nos conselheiros, relativas a umsuposto poder efetivo e autônomo de decidir sobre a política de saúde. A verdade é que tanto os conselhos como as conferências de saúde, no Brasil, estão longe de se organizarem como mecanismos efetivos de formulação, apoio e sustentação estratégica de políticas de interesse coletivo.
Algumas tendências preocupantes já se fazem notar na modalidade de participação vigente no Brasil, que já dá mostrar de estar em esgotamento. Falo da “autonomização”, levantando a expectativa social de que abrigariam um verdadeiro quarto poder; da “plenarização”, mediante a transformação das conferências em meros fóruns de debates entre os diversos segmentos sociais; da “parlamentarização”, com formação de blocos ideológicos e partidários e tomadas de decisão por votação, não por consenso; da “profissionalização”, dadas as fortes exigências da participação social, abrindo caminho  ocupação de espaços por grupos restritos formados geralmente por funcionários públicos e aposentados; além da “autorregulação”que representa uma particularidade praticamente exclusiva da área da saúde.
Quando, no caso da saúde, se fala em autonomia, paridade e poder deliberativo deve ser reconhecido que existe hoje uma enorme distância entre o idealizado e o real, ou entre o ideológico e o jurídico-administrativo. Afinal, se o verdadeiro atributo de deliberação é do Executivo, como afirmam e reafirmam as leis, outras tarefas, também nobres, podem e devem ser assumidas pelos conselhos e conferências de saúde, de acordo com conteúdo de diretriz do próprio Conselho Nacional de Saúde em sua resolução 333: “formular, mobilizar, fiscalizar, auto-regular-se, discutir, opinar, propor, exercer visão estratégica”.
Deliberar é ato atribuído dentro do panorama atual a pelo menos três instâncias da saúde: aos conselhos, às conferências de saúde e ao próprio Executivo, que na verdade é o único que o detém de fato e de direito. A verdade é que quando muitos deliberam, ninguém (ou um só) delibera de fato...
Já a paridade, que parece ser bastante legítima nos conselhos, ao garantir um equilíbrio de forças, no caso das conferências soa como uma bizarrice, obrigando a que a composição da fórmula participativa abrigue centenas ou até milhares de representantes de apenas três segmentos: gestores, prestadores e trabalhadores de saúde.
A participação social não é uma panacéia: esta é uma lição dos quase 20 anos de experiência brasileira na saúde. É necessário cometer a ousadia de pensar diferente do que está consagrado e reiterado, não necessariamente para aviltar as conquistas sociais, mas para aprimorá-las. E deixemos as teorias conspiratórias à parte.
 
 
 
 
 
  FLÁVIO_GOULART-CONFERÊNCIAS_DE_SAÚDE_NA_ENCRUZILHAD A
 
 
 GC-PC-ANÁLISE_PC_25_ANOS_SUS-NOV-2013


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