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O BRASIL É MAIS COMPLICADO DO QUE ALGUNS IMAGINAM...

FLAVIO GOULART
 
Seu Zé é analfabeto e mora longe da cidade, no fundão de Goiás. Para conseguir atendimento médico na sede do município, tem que pegar carona, viajar uma hora inteira e esperar às vezes mais de um dia inteiro fora de casa, alimentado a biscoitos de polvilho. Mas tem outro lado nessa história: seu Zé é aposentado pelo INSS, percebendo um dos tais “benefícios de prestação continuada”, da mesma forma que sua mulher e sua cunhada inválida, ambas igualmente analfabetas. Gente mais pobre e desvalida é impossível acreditar que haja... Mas na comunidade onde vivem, eles são considerados privilegiados, por incrível que pareça. Ali são todos pobres e quase todos têm que trabalhar de sol a sol para conseguir um dinheirinho no final do mês. E nem sempre há trabalho para todos. O diferencial que marca estes três velhinhos é que, para eles o dinheiro, apesar de pouco, chega com regularidade. E assim a família, apesar de ainda ser pobre, já pode contar, entre seus bens, com uma geladeira e uma TV novinhas. E a próxima aquisição deve ser uma máquina de lavar roupa.  Ah, sim: no armazém local, Seu Zé é um dos poucos que paga suas contas em dia.
 
Dona Cecília, por sua vez, tem sete filhos, de três pais diferentes. Trabalha na enxada, às vezes acompanhando o atual marido, outras vezes sozinha, ou melhor, com um dos filhos menores a lhe ajudar no que for possível. Ela está inscrita no programa Bolsa Família há alguns anos e, com isso, da mesma forma que o personagem do parágrafo anterior, mas diferente de boa parte dos moradores da vila, consegue pagar suas contas em dia na vendinha local. E conta com alguns eletrodomésticos básicos em sua cozinha. Sua última aquisição pode ser considerada um luxo: mandou aplicar em seu cabelo uma bela trança sintética do tipo rastafári, de fazer inveja a algum Bob Marley! Pagou por isso quase duzentos reais!
 
Alice, a filha mais velha de Cecília, tem 17 anos e já trabalha como doméstica, na cidade. Estuda à noite, mas falta muito às aulas, por dificuldades diversas. Seu bem mais precioso é um telefone celular, de segunda mão, que ganhou de uma ex patroa, através do qual tem acesso à internet. Adora o facebook, no qual, relata orgulhosa, possui mais de 300 “amigos”.
 
Alonso, o dono da venda, que já havido falido antes por duas vezes, mas que agora vai de vento em popa, atribui o sucesso atual de seu negócio a dois tipos de cliente novos: os aposentados rurais e os ex “sem terra”, assentados nas proximidades. Por incrível que pareça...
 
São faces de um Brasil novo, sem dúvida, ou, pelo menos, diferente do que conhecemos até bem pouco tempo atrás. Entendê-lo é mister complexo, que exige certa profundidade, além, com certeza, de decidida renúncia a preconceitos... Histórias assim não foram inventadas por mim, mas fazem parte da realidade que conheço. E elas continuam me intrigando e instigando a conhecer o nosso gigante de forma melhor e mais competente. E nem faço menção ás recentes manifestações que levaram milhões de pessoas às ruas em muitas cidades do Brasil.
 
Foi com o pensamento em casos desse tipo que me dei com o livro "Vozes do Bolsa Família", escrito pela socióloga paulista Walquiria Rego em parceria com o filósofo italiano Alessandro Pinzani,  recentemente lançado pela Editora Unesp. O livro é resultado de uma pesquisa de campo realizada no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais e suas conclusões são chocantes, mas no bom sentido! Vejamos.
 
O programa Bolsa Família, tão criticado pelos que não o conhecem e nem precisam dele, teria instaurado, segundo os autores, dignidade, segurança e respeitabilidade na vida das pessoas, algo de que nunca usufruíram, de fato. Daí vem a regularidade da renda, coisa tão simples e tão remota para tantos. E é assim que surge a euforia dos vendeiros, resultado do inegável impacto econômico e comercial nas comunidades rurais, pois, ao contrário do que o preconceito dita, os pobres não são necessariamente maus pagadores e até aprendem a bem gerir seu dinheiro.
 
Resolvido, então, o problema? Walquíria e Alessandro são cautelosos quanto a isso, mas consideram que está ocorrendo, de fato e de direito, uma democratização real na vida brasileira. Assim, talvez de forma inédita, a elite brasileira, que sempre pensou que o Estado fosse só para ela, começa a se mancar. A mudança é ainda mais profunda e surpreendente em outro aspecto. As mulheres desses sertões, por exemplo, ficaram mais autônomas com o Bolsa Família. Elas nunca tiveram dinheiro e passaram a ter, titulares que são de um cartão e de uma senha que é só delas. E demonstram mesmo uma forte moralidade, ao priorizarem a compra da comida para suas crianças. Quando sobra é que vem o colchão, a televisão, o adereço rastafári...
 
O mais sensacional ainda não foi revelado aqui: o coronelismo se enfraqueceu! A situação é muito diferente, agora, daquela antiga,quando o governo entregava o dinheiro ao prefeito ou outro coronel. Existe fraude? Sim, mas ela é cada vez menor e, além disso, as pessoas aprenderam a usar o telefone 0800 e ligam de fato para reclamar.
 
O seguinte depoimento dos autores, com efeito, revela uma situação que “não tem preço”, referente à compra mensal de gêneros alimentícios pela família: “uma comida que era deles, que não tinha sido pedida. Não tinham passado pela humilhação de pedi-la; foram lá e compraram”. E os autores advertem, com razão: é muito preconceito dizer que essas pessoas querem é consumir; quem está distante deles não pode nem imaginar o grau de carência, que finalmente começa a ser superado
 
O livro, essencialmente, denuncia que existe na sociedade brasileira uma enorme crueldade no modo como se fala dos mais pobres, coisa de uma sociedade pra lá de desigual. E quem é pobre, no Brasil, nem chega a ser olhado como cidadão, mas sim como membro de uma espécie de sub-humanidade. De fato, nenhum país passa impunemente por mais de três séculos de escravidão...
 
Coisa boa é constatar que possivelmente não temos mais no Brasil uma massa passiva de imbecis, que não reagem nunca. E chega de preconceitos, também... E viva os telefones celulares, a inclusão digital, a solvência dos pequenos comerciantes, as tranças rastafári e o sentimento de direitos, que finalmente ganham espaço no Brasil. Mas que morram a falta de escola, o transporte precário, a saúde indecente que nós temos.
 
Para entender este país é preciso, mais do que competência, generosidade...

 



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