Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
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Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira nº 23 - Agosto 2025

O mundo está pronto para o fim do multilateralismo?

Por Gonzalo Vecina


Em 2 de setembro de 1945, após a morte de cerca de 60 milhões de pessoas, da explosão de duas bombas atômicas, da destruição da Europa, do Japão e de muitas áreas na Ásia, o mundo resolveu tentar construir um conjunto de condições que permitisse resolver conflitos sem causar mais guerras.

Em outubro de 1945 foi criada a ONU (Organização das Nações Unidas), com uma estrutura própria de governança e um conjunto de órgãos voltados para incentivar e estruturar atividades voltadas para saúde, educação, trabalho, produção de alimentos, ciência e tecnologia, acolhimento de refugiados, tribunais internacionais, comércio e outras. O objetivo dessa complexa maquinaria era evitar novos conflitos mundiais e criar um mecanismo de administrar crises e que vem sendo chamado de multilateralismo.

Os problemas que envolvem as necessidades das nações são muito complexos e todos querem ter razão, daí o envolvimento de muitos países e órgãos compostos por representantes de todos os países membros.

Uma das situações que causam muitos conflitos entre nações é o comércio, a compra e a venda de produtos. Não existem países totalmente autônomos, todos têm que comprar algo e para fazê-lo, também vender. E também, como tem demonstrado a França, têm que se proteger da entrada de produtos de outros países, que podem ser mais baratos e portanto garantem mais acesso a seus cidadãos, mas desempregam pessoas no país comprador. É o caso dos agricultores franceses.

Portanto, tratar de comércio internacional não é somente compra e venda de qualquer coisa – também tem a ver com estimular atividades dentro do país, que produz empregos, gera a produção de valor para sua população.

Assim os países criam barreiras e instrumentos de controle para a circulação de bens e serviços entre si. E esses instrumentos podem ser barreiras que não se traduzem em dinheiro como as barreiras sanitárias, ou podem ser tarifas, um tipo particular de imposto a ser pago para ter acesso a um mercado.

Dentro do projeto multilateralista da criação da ONU, uma das áreas que foi muito cuidadosamente criada foi a estrutura voltada para regular o comércio entre países.

Em 1947 foi criado o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT (sigla em inglês). E, durante muitos anos, foi o órgão que conseguiu colocar alguma ordem nesse complexo território do comércio entre as nações.

Mas o mundo foi evoluindo (será?) e a bipolaridade gerada pelo ambiente da Guerra Fria foi substituído por uma nova ordem econômica e o poder de destruição atômica, subjacente ao poder econômico, construiu um novo arranjo mundial. As regras do GATT não estavam gerando um adequado acordo mundial e, em janeiro de 1995, ocorre a rodada do Uruguai do GATT, que cria um novo órgão – a Organização Mundial do Comércio - OMC. E como um dos problemas mais importantes que se vivia então era a questão do respeito a propriedade intelectual, os países que produziam novos conhecimentos e invenções impuseram ao mundo que não produzia conhecimentos, um novo tipo de regra.

Para usar o resultado de novas ideias, todos teriam que pagar royalties, ou seja, pagar ao detentor da patente para poder usá-la ou somente comprar do detentor da patente por um período de tempo que ressarcisse o dono da patente de seus investimentos – pelo menos 20 anos de exclusividade.

Essa discussão sobre a propriedade intelectual tem uma complexidade própria, cuja discussão está longe de encontrar um denominador adequado. Afinal, todo conhecimento é fundamental para gerar um novo conhecimento. Ou seja, nenhum conhecimento é suficiente por si para garantir que ele sozinho é responsável por uma inovação. Mas essa discussão é bastante complexa e a humanidade ainda terá que se dedicar mais a ela. O fato é que, naquele momento, depois de países como a Itália e o Japão terem criado um modelo de desenvolvimento baseado em copias de inovações, o mundo rico resolveu que era hora de por ordem na casa e proibir as cópias.

Esse foi o grande motor da criação da OMC. Naquele momento foi criado um instrumento fundamental chamado de Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – TRIPPS, assinado em 1994 na mesma rodada do Uruguai. Ele entra em vigor no Brasil, no ano 2000.

Os signatários da nova ordem gerada pela OMC/TRIPPS impunham que os países que quisessem se beneficiar do arranjo mundial do comércio e quisessem comprar e vender entre os países deveriam ter uma estrutura de respeito à nova ordem.

O Brasil vivia nesse momento uma fase de redemocratização, pós-aprovação da CF-88, em que estava inaugurando o Plano Real e ganhando a estabilização econômica. Havia passado pela hecatombe do desgoverno Collor que destruiu a indústria brasileira com a maneira como gerou o modelo de internacionalização da economia. O Brasil era um país muito fechado e cheio de barreiras tarifárias e não tarifárias construídas cuidadosamente pelos militares. Tudo ruiu sem nenhum cuidado, e o país se integrou na marra à economia mundial. Nesse momento foi promulgada a nossa lei de proteção de patentes – Lei 9279/96. Verdade que, desde os tempos de D Pedro II, o país já vinha tendo algum modelo de respeito a patentes.

Mas a nova lei, naquele momento, foi muito dadivosa com os proprietários de patentes: a lei entrou em vigor sem usar as flexibilidades que o TRIPPS permitia e que foram abusivamente utilizadas por países como a China e a Índia – grandes copiadores de patentes, para benefício de suas populações. Mas o Brasil foi um aluno servil das grandes economias.

Nessa época foi criada a Anvisa e a politica de cópias de medicamentos – os genéricos. Desde então, o Brasil vem duelando com esses interesses econômicos para garantir o acesso a medicamentos cada vez mais caros e que não roubam empregos, roubam vidas!

Neste momento, o poder dos Estados Unidos está produzindo um novo desastre: está negando a OMC e o acordo TRIPPS. Está negando o multilateralismo. E irá taxar as exportações brasileiras de forma arbitrária em 50%.

O Congresso brasileiro aprovou uma lei que permite que o Brasil retalie esse tipo de política. E o mundo e as empresas estão assistindo calados a isso. Parte da sociedade brasileira está torcendo pela vitória do efeito laranja sobre a nossa economia. O multilateralismo acabou se esse for o caminho.

A Big Farma está preparada para esse novo momento? Acho que temos que buscar um novo momento de diálogo para resolver essa confusão. O mundo está com uma crise climática tremenda e vamos criar uma desestruturação do modelo de comércio mundial pela vontade de um déspota ignorante?

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Gonzalo Vecina, Médico sanitarista, fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária

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Publicado em www.cnnbrasil.com.br




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