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Meio ambiente: MPT põe fim à pulverização de veneno em trabalhadores da laranja na década de 90

Campinas (SP) - O ano é 1997. Nos Estados Unidos, o então presidente Bill Clinton começava seu segundo mandato como chefe daquela nação; na Europa, falecia de um terrível acidente a Princesa de Gales, Diana, e o mundo perdia a presença de Madre Tereza de Calcutá. No Brasil, o Senado aprovava em segundo turno a emenda que possibilita a reeleição de prefeitos, governadores e presidentes, e presenciava a efervescência dos movimentos sociais, com 40 mil pessoas do Movimento dos Sem Terra tomando Brasília em protesto ao governo de Fernando Henrique Cardoso.
 
Alheios a todos estes acontecimentos, centenas de trabalhadores se perfilavam frente a arcos de pulverização, feitos de metal, para receber a dose diária do bactericida Quatermon no próprio corpo, como forma de “limpar” sapatos e roupas para, aí sim, adentrar os laranjais, livrando os pomares da crescente praga que se alastrava na agricultura do interior de São Paulo.
 
Os funcionários contratados para colher laranja em propriedades de uma grande empresa produtora de suco cítrico eram compulsoriamente dirigidos à névoa “gosmenta” de veneno, provocando umedecimento da pele e roupas. Segundo o administrador de uma das fazendas do grupo, localizada em Araraquara, o procedimento de borrifar o produto agrícola em seres humanos passou a ser adotado em razão da constatação da presença, nos trabalhadores, de bactérias nocivas às plantações, causadoras da doença conhecida como “cancro cítrico”. Ela provoca lesões nas folhas, frutos e ramos, gerando prejuízos às lavouras e, consequentemente, ao faturamento das empresas.
 
Na década de 90, as contratações de trabalhadores nos laranjais se davam por intermédio de cooperativas fraudulentas, utilizadas para burlar a legislação em favor unicamente dos produtores, que viam os lucros das exportações ameaçados pelo pagamento de encargos trabalhistas (confira aqui os reflexos do trabalho do MPT contra fraudes no cooperativismo rural). Tais relações de trabalho obrigavam o trabalhador a laborar em dezenas de plantações concomitantemente, o que aumentava as suspeitas de contaminação por parte dos grandes produtores.
 
Não havia espaço para discordâncias: aqueles que tentavam se desvencilhar do arco eram trazidos de volta ao “banho matinal”. Certa vez, ao submeter-se à aplicação do Quatermon, sem qualquer proteção, uma trabalhadora fez cara de dor e gritou, não só em decorrência dos danos gerados pelo contato físico com o produto, cujo efeito no organismo humano ainda era desconhecido da maioria dos pesquisadores, mas, principalmente, pela ferida que se abria na sua dignidade.
 
Recomendações para uso do Quatermon
 
O Quatermon é um bactericida de uso veterinário, utilizado originalmente para a desinfecção de ambientes onde circulam animais. O composto também pode ser aplicado na limpeza de utensílios e equipamentos usados em atividades leiteiras, indústrias avícolas, pecuárias, haras e canis.
 
O próprio fabricante do produto, em seu rótulo, recomenda que ele seja utilizado apenas em instrumental agrícola e outros objetos inanimados. O Quatermon não possui registro na Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, apenas no Ministério da Agricultura.
 
O laudo elaborado pela perícia do Ministério Público do Trabalho concluiu que, dentre outros, o bactericida não estava avaliado para uso em seres humanos, em corpo inteiro, e que o uso prolongado pode provocar problemas oculares, reações alérgicas e irritativas cutâneas, asma ocupacional e lesões da mucosa nasal. A conclusão foi de que o uso do produto em trabalhadores é ilegal.
 
Intervenção do MPT
Em 1997, o Ministério Público do Trabalho em Campinas não havia experimentado o processo de interiorização, que se iniciaria quatro anos após o citado episódio, em Bauru. A instalação do Ofício de Araraquara, cuja circunscrição atenderia a denúncia, ainda demoraria nove anos para se concretizar. Apesar do quadro reduzido de servidores e procuradores, o interesse público tinha de ser atendido. Para isso, o procurador Ricardo Tadeu da Fonseca, atualmente desembargador do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná, foi designado para ir de Campinas às fazendas pertencentes à empresa denunciada para verificar as condições de meio ambiente de trabalho.
 
Para aqueles que não o conhecem, o desembargador Ricardo Tadeu é o único magistrado do Brasil a possuir deficiência visual, e também era o único procurador que não possuía a visão nos dois olhos. Vítima de paralisia cerebral ao nascer, ele experimentou a perda parcial da visão ainda criança. Aos 23 anos, período em que cursava o terceiro ano da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ele ficou totalmente cego.
 
Contudo, a limitação imposta seria um obstáculo, mas não um impedimento para o seu crescimento profissional. Formou-se com o apoio de colegas, que gravaram o conteúdo dos livros e das aulas para que estudasse. Em 1991, entre 5 mil candidatos, foi aprovado em 6º lugar no concurso para procurador do Trabalho e tomou posse no cargo.
 
Devido à sua condição física, o procurador não viu a afronta à dignidade humana decorrente do uso indiscriminado do Quatermon nos homens e mulheres que trabalhavam naquelas fazendas. Mas ele encontrou outra forma de experimentar o drama vivenciado por aquelas pessoas, inclusive para fins de instrução do inquérito: ele pediu para que o veneno fosse borrifado nele próprio.
 
Segundo as lembranças de Fonseca, um dos médicos da empresa, presente no local investigado, chegou a afirmar: “Essa solução não tem problema algum para a saúde dos trabalhadores, pois ela é diluída em água. Não faz mal a ninguém”.
 
Intrigado com as palavras do representante da produtora de sucos, o procurador retrucou: “Pois eu quero ser submetido ao arco de pulverização. Vamos ver o que esses trabalhadores sentem ao receber o veneno”.
 
Vestido de camisa curta, gravata e calça jeans, Fonseca passou pela névoa de Quatermon, como o fizeram os empregados responsáveis pela colheita. “Ao passar pelo arco, senti ardência nos olhos, coceira na pele e um incômodo nas vias respiratórias”, lembra Fonseca, quatorze anos depois do ocorrido.
 
As diligências realizadas em fazendas nos municípios de Taquaral e Bebedouro, constataram a descabida prática de pulverização de substância líquida com fórmula química desconhecida em seres humanos, o que resultava na inalação ou aspiração do produto pelos trabalhadores, além do contato direto com a pele. Isso era feito há pelo menos quatro meses.
 
“Em uma das diligências, chegamos à fazenda às 5 horas da manhã, escondemos os carros atrás das árvores, com o farol apagado, e ficamos de campana nos pomares a cerca de 100 metros do portão de entrada. Assim que o ônibus com os trabalhadores chegou, cercamos o veículo e, enquanto os colhedores eram submetidos a nebulização de veneno, um servidor do MPT fazia imagens do flagrante com uma câmera filmadora. Mais tarde, elas seriam divulgadas pela imprensa em rede nacional”, lembra Fonseca.
 
O Ministério do Trabalho e Emprego de São Carlos, na figura do então subdelegado do trabalho Antonio Valério Morillas, apreendeu amostras do líquido, que foram enviadas para análise ao Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo.
 
A perícia médica do Ministério Público do Trabalho deu seu parecer acerca do uso do produto diretamente sobre trabalhadores como meio de combate químico à disseminação do cancro cítrico.
 
“Existem suficientes elementos referentes a estudos e relatos na literatura médica mundial para justificar que o emprego do produto Quatermon, da forma como vem sendo feito na empresa investigada reúne riscos à saúde dos trabalhadores, e deve ser alvo de prévia e rigorosa avaliação pelos órgãos federais competentes da área de saúde”, afirma o parecer.
 
Com base em levantamentos junto a bases de dados toxicológicos, devidamente juntados nos autos pelas entidades públicas especializadas na área de toxicologia e saúde do trabalhador, o parecer técnico aponta efeitos diversos decorrentes da exposição ao bactericida no globo ocular, no aparelho respiratório, na mucosa nasal e na pele.
 
“Não nos parece, frente à revisão da literatura médica, que os dizeres de advertência presentes no rótulo do produto Quatermon ali se encontrem apenas por causa da exigência de uma legislação a qual não é específica para essa classe de substâncias. A nosso ver, a norma legal está plena de justificativa, inclusive para esse produto, quando obriga o fabricante à advertências escritas, à luz dos efeitos já verificados no ser humano e relatados no presente parecer”, esclarece o texto.
 
O laudo ainda analisa a composição do produto, a argumentação e defesa da empresa, a caracterização da situação legal do produto e da sua utilização, regulamentação dos germicidas no Brasil e, finalmente, os efeitos adversos registrados na literatura médica, relativo às substâncias químicas presentes no produto Quatermon.
 
Sobre os efeitos do composto na visão dos trabalhadores, o relatório fala de “toxicidade do cloreto de benzalcônio (substância presente na solução) para a córnea humana” e na “estabilidade do filme lacrimal pré-corneano”, risco de alergia, associação com a “síndrome do olho seco”, “degeneração endotelial tóxica” em casos de patologia tratada com o cloreto de benzalcônio, riscos de “acúmulo de quaternário de amônio nos pigmentos oculares” e lesões em geral.
 
Para o aparelho respiratório, o parecer concluiu que a exposição pode gerar asma ocupacional e complicações para pacientes asmáticos. Além disso, o produto pode agravar renites e gerar complicações na mucosa nasal, como metaplasia escamosa.
 
Segundo o laudo, o contato do Quatermon com a pele pode propiciar alergias, irritação cutânea e dermatite.
 
“Deve-se lembrar que, dependendo das investigações, eventuais caracterizações de possíveis práticas lesivas à saúde dos trabalhadores podem, em tese, ser alvo de enquadramento em diversos dispositivos legais; da mesma forma, existe legislação federal relativa aos produtos sob regime de Vigilância Sanitária; bem como dispositivos ético-disciplinares relativos à prática médica e da área de agronomia”, finaliza o parecer, que foi juntado ao processo judicial que estava prestes a ser ajuizado.
 
Sobre a elaboração do parecer
 
Elaborado pelo médico perito Marcos Oliveira Sabino, ainda hoje no MPT, o parecer técnico, considerado uma obra pericial de extrema relevância pelas pessoas envolvidas no processo investigatório e, posteriormente, judicial, não foi concebido com facilidade.
 
À época com 34 anos de idade, o jovem médico com formação em saúde pública teve seu conhecimento posto à prova frente ao “caso Quatermon”. Sem ter sequer um computador à disposição, Sabino pagou cerca de 100 horas de acesso residencial à internet, por linha discada, para viabilizar fontes de busca para embasar a dúvida quanto à questão.
 
“Eu praticamente virava noites para produzir o material, mas foi um dos períodos mais honrosos e proveitosos da minha vida. Não posso deixar de citar, em nome de todo o respeito e significado que têm, a ajuda e colaboração dos colegas médicos do Ministério do Trabalho e Emprego, Gil Vicente Fonseca Ricardi e João Batista Amâncio, que leram o parecer técnico e contribuíram com sugestões, dúvidas e questões, incorporadas”, revela o médico.
 
Caso vai à justiça
 
A empresa não aceitou desativar os arcos por vontade própria, posicionando-se contrária a um acordo. O procurador juntou provas suficientes para pedir ao Judiciário que atendesse aos princípios da dignidade humana e da precaução, já que não existiam estudos consistentes que comprovassem a repercussão da concentração da substância amônia quaternária no organismo humano.
 
A juíza Edna Pedroso Romanini concedeu liminar na ação civil pública ajuizada pelo MPT, determinado à empresa ré a parada imediata da pulverização do Quatermon nos trabalhadores. “Ora, os fatos narrados, por si só, em princípio causam espanto, eis que, em princípio, nenhum trabalhador poderia submeter-se ao uso de qualquer produto, seja por via oral ou dermal sem prévia recomendação médica e, isto em caráter individual, para exercer as suas funções, é que assegurando o direito à dignidade da pessoa humana dispôs, a Carta Magna, no artigo 196”, escreve a magistrada.
 
“Constata-se, outrossim, do parecer técnico juntado (...) que o produto supra citado estava sendo aplicado diretamente nos trabalhadores, sem qualquer tipo de proteção, através de nebulização, em que pese, inclusive, o fato de no próprio rótulo do aludido medicamento, existir orientação para que seja evitada a inalação ou aspiração, sendo, o mesmo, indicado exclusivamente para a agricultura. Verifica-se, ainda, que concluindo o trabalho, foi constatado, através de estudos, que o uso do aludido medicamento pode causar várias patologias, como asma ocupacional e dermatite de contacto alérgica, inexistindo, entretanto, uma conclusão específica relativa às ocorrências, em seres humanos, do uso prolongado na forma descrita, ou seja, repita-se, através de nebulização de corpo inteiro e vestuário”, diz a decisão.
 
A juíza continua: “Portanto, não pode o trabalhador, expor a sua integridade física a possíveis danos sem prévia ciência das possíveis conseqüências. Tampouco, poderia a empresa adotar procedimento similar sem a comprovação de que o mesmo não iria ocasionar sérios problemas de saúde para os trabalhadores”, finaliza.
 
A decisão proibiu o uso de máquinas para pulverizar os trabalhadores em todas as fazendas da empresa, no total de 37, sob pena de multa no valor de R$ 5 mil por dia. Após o proferimento da liminar, a ré aceitou firmar um acordo e nunca mais submeter pessoas ao banho de veneno.
O MPT voltou às fazendas para verificar o cumprimento da obrigação assumida perante o juízo. Ao lembrar-se dos momentos finais do inquérito, Ricardo Tadeu deixa escapar um detalhe dos bastidores da diligência. “Ao voltar em uma das fazendas para conferir se os arcos de pulverização haviam sido retirados, senti que alguém puxou subitamente a bengala da minha mão. O servidor do MPT que me acompanhava na diligência, José Daniel de Mello (ainda hoje na Procuradoria), pulou na minha frente e, utilizando-se da bengala, impediu que um cachorro da raça Fila me atacasse. Aquele cachorro ia acabar comigo, senti o tamanho dele ouvindo o barulho das suas patas ao chão. Ele salvou a minha vida”, conta Fonseca.
 
A atuação do MPT no caso conhecido simplesmente como “Quatermon” beneficiou milhares de trabalhadores rurais, garantindo um meio ambiente de trabalho seguro e saudável.
 

Fonte: Ascom MPT 15ª

 



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