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Como conciliar a ética com os progressos da ciência?

Considerado o pai da bioética brasileira, o médico William Saad Hossne defende pesquisas com animais, mas diz que há "exageros", e sentencia: Brasil não aceita mercado de seres humanos
 
William Saad Hossne vive há 86 anos e é médico há 62. Formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1951, é professor emérito da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu (que ajudou a fundar, em 1962), atualmente parte da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Também foi reitor da Universidade Federal de São Carlos entre 1979 e 1983 e participou da criação da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da qual diretor científico.
 
Apesar da longa carreira de especialista (cirurgia gastroenterologista), é também conhecido em uma área multidisciplinar: a bioética. Em conjunto com a professora Sonia Vieira, escreveu uma das obras fundamentais sobre o assunto no País, “Experimentação em seres humanos”, de 1986. Fundou a Sociedade Brasileira de Bioética e ajudou a criar a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep, dentro do Conselho Nacional de Saúde), que coordenou entre 1996 e 2007. Ali, ajudou a formular os códigos que norteiam as pesquisas científicas realizadas no Brasil desde 1996. Atualmente encabeça o curso de pós-graduação em bioética no Centro Universitário São Camilo, em São Paulo.
 
Em entrevista por telefone à Revista FH, o Saad é categórico ao afirmar que, sim, é possível praticar ciência experimental de forma ética, e que o intuito dos códigos e resoluções não é frear o desenvolvimento da humanidade, mas sim precaver perigos potenciais.
 
QUEM
William Saad Hossne é médico cirurgião gastroenterologista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). Coordena o curso de pós-graduação em bioética no Centro Universitáro São Camilo, em São Paulo, e é professor emérito da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu. Participou da fundação da Fapesp e da Conep.
 
Revista FH: O senhor se formou em medicina em 1951, cerca de 62 anos atrás. Quais eram os dilemas éticos que continuam nos dias de hoje? O que mudou?
William Saad Hossne: O avanço de conhecimento científicos e tecnológicos nos últimos anos tem sido feito em uma escala realmente impressionante. Tomamos como marco histórico a postura de Galileu Galilei, no século 14 para o 15, que dizia que a verdade sobre os fenômenos da natureza é obtida através da experimentação e observação, dando origem às ciências experimentais. Com a metodologia científica, o conhecimento avançou de maneira muito mais rápida do que até então. Ao final de dois séculos, esse avanço configurou o que se chamou de Revolução Científica, acoplada à Revolução Industrial. Somente no século 20 tivemos cinco revoluções em único século. Nas duas primeiras décadas do século 21 se apresenta outra revolução, que é a junção de todas as outras atuando em conjunto, articuladamente, que trará uma soma de conhecimentos extraordinária. O mundo é outro, as coisas mudaram em escala impressionante. O que até então era inimaginável agora é possível. E cada um desses avanços traz desafios éticos, pois novos conhecimentos serão aplicados no ser humano, e temos que cuidar destes aspectos.
 
FH: Quando o senhor se interessou e se envolveu com a bioética? Por que razões?
Hossne: É um envolvimento que seguiu uma linha natural. Logo depois de formado, me dediquei à pesquisa em cirurgia, que é minha área de atuação. Naquele tempo tínhamos uma disciplina chamada Técnica em cirurgia experimental, que na verdade era um treinamento de técnicas operatórias em animais. Na história da medicina você vê várias pesquisas feitas em seres humanos que obedeceram apenas a ética do próprio pesquisador, o que culminou nos abusos nos campos de concentração cometidos por médicos nazistas. Após o julgamento destes médicos no tribunal de Nuremberg, no fim da Segunda Guerra Mundial, se constata que não havia nenhuma norma ética específica para pesquisa em seres humanos. Depois veio a Declaração de Helsinque e foram surgindo outros documentos internacionais mostrando a necessidade de um balizamento ético na pesquisa. Como estava me dedicando a cirurgia experimental, isso me impressionou, pois achei necessário que houvesse uma ética na prática. Na década de 80, juntamente com a professora Sonia Vieira, da Unicamp, publicamos o livro “Experimentação em Seres Humanos”. Chamávamos a atenção para a necessidade de normas brasileiras sobre ética em pesquisa, já que os documentos internacionais não tinham força – e nem poderiam pela sua natureza declaratória. No início da década de 90 fundamos a Sociedade Brasileira de Bioética. Depois fui para o Conselho Nacional de Saúde, onde fiquei de 1995 a 2007, onde propus a feitura das normas de ética para pesquisa em seres humanos que temos hoje.
 
FH: Como o senhor avalia a pesquisa feita no Brasil, do ponto de vista ético?
Hossne: O Brasil, até 1988, seguia as declarações internacionais. O que havia era a Declaração de Helsinque e o Código de Nuremberg, que são recomendações. No mesmo ano o Conselho Nacional de Saúde (CNS) decidiu criar uma norma para o Brasil. Uma resolução de 1988 criou algumas normas éticas para pesquisa médica em seres humanos. Foi um marco importante, mas infelizmente não pegou. Olhando para trás vejo que ele misturou aspectos de vigilância sanitária, biossegurança, ética, radioisótopo, genética, e por isso não prosperou. Em 1994 propus ao conselho que fosse feita uma norma para o Brasil, agora à luz da bioética, de uma forma multidisciplinar. Foi instituído um grupo de trabalho de 13 pessoas, em que apenas cinco eram médicos. Houve representantes de outras áreas, inclusive portadores de patologias e financiadores de pesquisa. A primeira resolução, a 196/1996, é uma das mais completas do mundo pela natureza bioética. Ouvimos a comunidade, com participação multidisciplinar. Ela estabelece normas, não é apenas uma mera declaração, e cria uma sistema de acompanhamento vinculado ao controle social do CNS.
 
FH: Alguns cientistas defendem que a reflexão ética sobre a pesquisa científica deve vir somente após os resultados. Eles alegam que da forma que ocorre atualmente se trava o desenvolvimento científico. O que o senhor pensa a respeito?
Hossne: É uma visão distorcida. Pelo menos as nossas resoluções não pretendem criar obstáculos à pesquisa, mas sim e tão somente que o conhecimento seja obtido e aplicado de maneira eticamente adequada. Acho que não devemos criar mecanismos de vedação. Nada é vedado. Só não deve ser permitido aquilo que não é adequado, para o ser humano. Não devemos temer o novo conhecimento, pelo contrário, devemos aplaudi-lo. O que devemos temer é a ignorância e o obscurantismo. Porém, os avanços do conhecimento se fazem em escala muito mais rápida do que a análise ética, que exige tempo, reflexão, e senso crítico. É possível impedir coisas absurdas como o que aconteceu nos campos de concentração, ou mesmo fora, como experiências feitas propositalmente com pacientes doentes para ver como evolui uma doença. Isso pode ser previsto e impedido. O limite do avanço é a ética.
 
FH: Alguns futurologistas utilizam termos como “transumanismo” e “humanidade 2.0”, levando o homem a um novo estado de desenvolvimento. Alguns encaram a velhice como doença e cogitam a imortalidade. Chegaremos realmente a este ponto?
Hossne: Não sei se chegaremos, mas não acho que deva ser obstaculizado. Existe risco, perigo, mas por esse raciocínio – que é válido – posso imaginar um ser humano produzindo um pós-humano, que estou extinguindo o gênero humano. Mas não é bem isso. Posso tirar proveito desse avanço para beneficiar o homem. Essa questão está quente e deve ser discutida para podermos analisar caso a caso o que pode ser feito. Quais são os riscos? E os benefícios? Cotejando uma coisa e outra é que nós vamos avançar. Se pudermos dar à humanidade melhores condições para tudo, desde que traga riscos menores que os benefícios, isso pode ser válido.
 
FH: Quais avanços da biotecnologia o senhor considera atualmente mais relevantes para a humanidade, enquanto espécie? Quais são mais inquietantes, do ponto de vista ético?
Hossne: Todas essas tecnologias, particularmente a biotecnologia, que mexe com a vida, têm riscos e podem trazer benefícios enormes. Veja o campo que se abriu com a engenharia genética. É um conhecimento extraordinário para a humanidade, não há dúvidas. Quando se criou a palavra bioética estava-se preocupado com o seguinte: o homem domina a biotecnologia de tal forma que pode evoluir para o bem, se aplicá-la de forma adequada, como pode se autodestruir. Tenho dificuldade em apontar este ou aquele fenômeno. Acho que os avanços estão na biotecnologia como um conjunto.
 
FH: Clonagem foi um tema que causou grande comoção nos anos 90, mas parece ter saído um pouco dos holofotes. Isso significa que os avanços nesta área pararam? Se sim, por qual razão?
Hossne: Acho que o campo da biotecnologia é bastante dinâmico. Uma coisa se relaciona com a outra. Quando se dominou a clonagem ela foi usada para criar a ovelha [Dolly, nascida em 1996]. Há momentos em que a pressão é maior para outros aspectos. Houve um aumento do uso das células- tronco, não de uma maneira tão agressiva como se pensava, mas partindo dos princípios de que as células- tronco podem fabricar células nervosas, do miocárdio etc. Eu diria que a biotecnologia está evoluindo articuladamente e que cada descoberta em um desses campos implica em outro.
 
FH: Os testes de remédios e cosméticos em animais ganhou espaço recentemente na mídia, devido à invasão de um laboratório [do Instituto Royal, em São Roque, SP]. Como o senhor avalia essa questão?
Hossne: O que importa é avaliar de maneira ampla. Todos os documentos internacionais preveem que, antes de testar um produto em seres humanos, é preciso tomar todos os cuidados quanto aos riscos e benefícios. Recomenda-se que se faça pesquisas em laboratório. Um dos pontos é a aplicação eventual em animais de experimentação. É a chamada fase pré-clínica, que serve para o pesquisador adquirir maior conhecimento, e as comissões de ética poderem analisar se já está na hora de testar em seres humanos. Tudo para evitar que o ser humano seja submetido a um risco muito sério. O que acontece é que há um abuso do uso dos animais. Existem certos conhecimentos, com as modernas tecnologias, em que se pode prever uma série de informações em que não seria necessário o uso do animal. Modelos simulados, por exemplo, permitem prever um pouco das propriedades de uma nova molécula que se quer testar. Vários países estão desenvolvendo, incrementando e incentivando a criação de métodos alternativos aos animais, o que não quer dizer que eles deixarão de ser usados, mas vai evitar o uso sem necessidade.
 
FH: No Brasil não é prática comum o pagamento de pessoas para que elas participem de testes científicos, como acontece nos EUA ou Inglaterra. Por quê?
Hossne: Quando estávamos criando os códigos esta questão foi discutida. A comissão [Conep] foi alertada e levou em consideração as disposições morais do Brasil. Não aceitamos mercado humano. Falamos em doação de órgãos, embora em outros países seja permitido vender um rim, ou a prática de barriga de aluguel. Os hemocentros só aceitam doação. Dentro desta visão foi posto que não há pagamento. O voluntário não pode ser comprado, seduzido ou coagido. Nossas condições morais e éticas apelam muito mais para o princípio do altruísmo para conservação da espécie, um compromisso com a humanidade inteira. O que se poderia discutir, e isto sim merece análise, é se o país em que estão os pacientes sendo testados em estudos multinacionais não deveria receber royalties por isso. A implicação de recebimento é complexa, mas temos que levar em conta que nossas leis não permitem o mercado humano.
 
Fonte: Saúde web


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