Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

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Conselho Editorial
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ISSN 2525-8583



Domingueira nº 14 - Abril 2024

A alta incidência de suicídio entre crianças e adolescentes e a necessidade de aprimoramento das políticas públicas

Por Maria Julia Kaial Cury e Reynaldo Mapelli Júnior


O cenário, preocupante, exige a participação do Estado e da sociedade na busca por soluções emergenciais

Nestes últimos meses, foram publicados diversos artigos acerca do aumento expressivo no número de casos de suicídio no Brasil e no mundo. Este crescimento sinaliza a necessidade urgente de um debate social sobre o fenômeno, além da elaboração imediata de políticas públicas voltadas à conscientização e prevenção do problema, especialmente no campo sanitário porque as causas do pensamento, dos planos e da ação suicida estão vinculadas diretamente a transtornos mentais tratáveis.

Uma pesquisa publicada pela revista cientifica The Lancet, em fevereiro de 2024, revelou que, entre os anos de 2011 e 2022, o Brasil registrou mais de 147 mil casos de suicídio, o que representa um aumento de quase 4%. (1)

Outro artigo publicado neste mesmo mês, desta vez pela Fiocruz, resultado de um estudo realizado em colaboração com a Universidade de Harvard, destacou que a taxa de suicídio entre jovens cresceu 6% ao ano no Brasil entre os anos de 2011 e 2022 e que a taxa de notificação por autolesões na faixa etária de 10 a 24 anos aumentou em 29% nesse mesmo período. Apesar da redução do número de suicídio em escala global entre 2000 e 2019, nas Américas houve um crescimento de 17%, sendo que apenas no Brasil o aumento foi de 43% no mesmo período. (2)

Já a mais recente publicação da BBC News Brasil3, de 21 de fevereiro de 2024, trouxe os últimos dados sobre o tema, alertando para a disparada nas taxas de suicídio nos EUA. Ali, foram confirmados 49.449 suicídios em 2022, maior taxa registrada no país e quase 3% acima dos índices de 2021. Estes números podem ser ainda maiores, já que muitas mortes demandam meses de investigação até serem confirmadas como suicídio.

Uma coisa é certa: independente dos números, o suicídio vem crescendo de maneira preocupante especialmente entre os jovens, e já se tornou um problema de saúde pública.

Ainda considerado um tabu, o tema exige uma ampla discussão, que envolva e mobilize toda a sociedade. Por outro lado, o silêncio ou a negação só farão com que os números aumentem ainda mais.

Suicídio: um problema de saúde pública

O SUS, que pelo desenho institucional imposto pela Constituição Federal e pela Lei Orgânica da Saúde deve fortalecer as atividades preventivas na saúde e organizar as políticas para garantir universalidade no acesso e integralidade na assistência, precisa avançar na construção de políticas para prevenir o suicídio e tratar suas vítimas, sempre caminhando mediante intersetorialidade com outras políticas dada a complexidade da questão (educação, inclusão social, assistência social, etc.) e com especial atenção aos jovens, porque pessoas em desenvolvimento muito vulneráveis à autolesão e ao suicídio no mundo contemporâneo, que devem ser priorizadas como estabelecido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nesta perspectiva, é possível apontar para algumas ações viáveis que precisam ser consideradas pelo gestor público, sob pena de responsabilização sanitária por omissão.

Fundamentalmente, deve-se aprimorar no SUS a Política Nacional de Promoção à Saúde (Portaria MS nº 687 de 30 de março de 2006), a Política Nacional de Prevenção ao Suicídio (Lei Federal nº 13.819 de abril de 2019) e as Diretrizes Nacionais para a Prevenção do Suicídio (Portaria do Ministério da Saúde nº 1.876 de agosto de 2006), mediante a construção de programas e serviços eficazes por pactuação dos entes federados que considere indicadores de saúde como a morbidade, a mortalidade, os aspectos demográficos, as condições socioeconômicas e os fatores de risco, dada a complexidade do fenômeno.

Nesse sentido, no trabalho “Superior interesse da criança e do adolescente e o direito fundamental a uma política pública de prevenção ao suicídio” (4), fez-se uma série de propostas a serem implementadas urgentemente, para que seja possível inibir o aumento significativo do número de casos de suicídio infanto-juvenil.

Limitar o acesso aos meios de suicídio, interagir com a mídia para informações responsáveis sobre suicídio, de forma a conscientizar a população da importância de procurar ajuda, bem como de desestigmatizar o tema, fomentar habilidades socioemocionais para a vida em adolescentes, dentre elas a alfabetização em saúde mental e o enfrentamento do sofrimento psíquico, além de identificar, avaliar, gerenciar e acompanhar precocemente qualquer pessoa afetada por comportamentos suicidas são algumas das ações urgentes defendidas: em todas elas, pela própria natureza, as políticas públicas têm que ser organizadas intersetorialmente com a participação integral de setores como a saúde, a educação e a assistência social, sob pena de ineficácia (5).

Há necessidade de se destacar, dentre elas, especialmente a necessidade de criação de um Pronto Socorro Infantojuvenil Psiquiátrico nos Hospitais de Especialidades e/ou nos já existentes Hospitais Gerais, uma falha na assistência em saúde mental frequentemente detectada pelos estudiosos. A iniciativa, fundamental, permitiria que o jovem fosse atendido por médicos e enfermeiros capacitados e experientes, capazes de prestar uma assistência adequada e eficiente. Tais profissionais fariam o primeiro contato com o paciente e, após a avaliação inicial, determinariam o encaminhamento para a rede secundária de atendimento do SUS, como o AME Psiquiatria, os CAPS ou eventualmente a internação em hospital de perfil adequado, se necessário.

Além disso, o SAMU também deveria estar treinado e preparado para atender aos chamados de tentativa de suicídio infantojuvenil e sua condução para os Pronto Socorro Infantojuvenis em Hospitais Especializados em Psiquiatria e/ou Hospitais Gerais e, na sua ausência, nos Pronto Atendimentos Infantojuvenis, onde deveria existir sempre um médico psiquiatra de plantão, 24 horas.

A atuação profissional vem demonstrando que as crianças e adolescentes que tentam o suicídio são levados às Unidades de Pronto Atendimento pelo SAMU, e lá permanecem aguardando vaga em algum Hospital psiquiátrico através da fila do sistema de regulação de vagas do SUS, como o CROSS (Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde) da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

Porém, diante da insuficiência de leitos psiquiátricos infantojuvenis em Hospitais infantis no Estado de São Paulo para atender a toda a demanda – uma evidência da incapacidade do Estado de cuidar desse público –, como ponto de atenção fundamental na RAPS (Rede de Atenção Psicossocial do SUS), os jovens permanecem por um longo período na Unidade de Pronto Atendimento, local inadequado para recebê-los, aguardando a liberação da vaga (algo que, infelizmente, ocorre raramente). Depois da internação psiquiátrica, deveriam receber, mediante o planejamento de equipe multidisciplinar, os cuidados ambulatoriais que necessariamente devem ser disponibilizados para o jovem que tentou o suicídio.

Quando a vaga para a internação ou a assistência ambulatorial especializada não aparecem, há um impasse, e o paciente é liberado para a família, sem receber os cuidados necessários, em total desrespeito aos mínimos princípios constitucionais referentes à vida, saúde, infância e juventude, violando a dignidade da pessoa humana.

A importância dos educadores

É preciso cobrar das autoridades, ainda, a imediata implementação da Lei Federal nº 13.935/2019, para que as escolas da rede básica de ensino público tenham em seus quadros psicólogos e assistente sociais treinados e capacitados, para atuar diretamente com os professores junto aos alunos na discussão sobre o suicídio.

O sucesso deste diálogo construtivo foi observado na Escola Pública Joaquim Bastos Gonçalves, na cidade de Carnaubal, interior do Ceará. Com o projeto “Adote um Estudante” a instituição ganhou o prêmio "Melhores Escolas do Mundo", na categoria “Apoiando Vidas Saudáveis”, desbancando instituições privadas dos Estados Unidos da América e do Reino Unido.

O projeto foi idealizado em 2021, no pós-pandemia, quando os professores observaram que no retorno às aulas presenciais muitos jovens enfrentavam problemas de ansiedade, transtorno de depressão, automutilação, baixa autoestima, dificuldades de comunicação e de socialização.

Para ajudá-los, Guilherme Barroso, professor de educação física e diretor de turma na instituição, procurou nas redes sociais psicólogos dispostos a atender os estudantes voluntariamente, via Google Meet. O projeto contou, ainda, com a participação dos pais, que foram orientados sobre a importância do profissional da psicologia na discussão da saúde mental, um tema tão delicado e profundo. "Aqueles que receberam apoio relataram melhorias na sua autoestima e no bem-estar geral, resultando em um melhor desempenho acadêmico e em um renovado sentido de esperança", afirma o prêmio (6) (7).

Como se vê, medidas concretas que são de possível execução, como as de implementação de Pronto-Socorro Infantojuvenil Psiquiátrico, treinamento do SAMU, disponibilização de vaga de internação psiquiátrica ou tratamento ambulatorial especializado e contratação de psicólogos e assistentes sociais em escolas, indicam a possibilidade de aprimoramento das políticas públicas, em respeito às peculiaridades do público infantojuvenil.

Se o cenário de aumento da incidência de suicídio entre crianças e adolescentes é preocupante, deve-se enfrentar o problema com urgência e competência. O primeiro passo? Aceitar que o suicídio é um problema grave de saúde pública – mas também de outros setores essenciais como os da educação e da assistência social, que vem ceifando a vida de inúmeros jovens e crianças. E, a partir desta conscientização, iniciar um debate aberto e franco, que envolva a participação das famílias, escolas e do Estado, para juntos encontrarem soluções.


(1) - The LANCET Regional Health. The rising trends of self-harm in Brazil: an ecological analysis of notifications, hospitalisations, and mortality between 2011 and 2022. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lanam/article/PIIS2667-193X(24)00018-8/fulltext#:~:text=From%202011%20to%202022%2C%20720%2C480,have%20increased%20in%20the%20country. Acessado em 27/02/2024.

(2) - Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Estudo aponta que taxas de suicídio e autolesões aumentam no Brasil. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/2024/02/estudo-aponta-que-taxas-de-suicidio-e-autolesoes-aumentam-no-brasil . Acessado em 27/02/2024

(3) - Center of Disease Control and Prevention. Suicide Data and Statistics. Disponível em https://www.cdc.gov/suicide/suicide-data-statistics.htm. Acessado em 27/07/2024.

(4) - Superior interesse da criança e do adolescente e o direito fundamental a uma política pública de prevenção ao suicídio. Maria Júlia Kaial Cury – São Paulo, 2023. Orientador: Prof. Dr. Reynaldo Mapelli Júnior. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Santo Amaro, 2023.

(5) - Direito humano à saúde: a organização dos serviços e a intersetorialidade nas políticas como condição de efetividade. Reynaldo Mapelli Júnior – Belo Horizonte, 2023. In: Ribeiro, Paulo Dias de Moura; Tomelin, Georghio Alessandro; Kim, Richard Pae (Coord.). Direito humano e fundamental à Saúde: estudos em homenagem ao ministro Enrique Ricardo Lewandowski. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 387-403. ISBN 978-65-5518-606-2.

(6) - Secretaria da Educação – Governo do Estado do Ceará. Escola cearense vencedora do “Melhores do Mundo” expandirá ações com prêmio recebido. Disponível em: https://www.seduc.ce.gov.br/2023/11/08/escola-cearense-vencedora-do-melhores-do-mundo-expandira-acoes-com-premio-recebido/. Acessado em 27/04/2024.

(7) - UOL Educação. Duas escolas públicas do Brasil estão entre as melhores do mundo em prêmio. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2023/11/04/escolas-brasileiras-premio-melhor-mundo.htm. Acessado em 27/04/2024.


Maria Julia Kaial Cury: Promotora de Justiça do MPSP. Mestre em Direito Médico pela UNISA. Ex-membra da Procuradoria Jurídica do Município de Vargem Grande Paulista e do Tribunal Eclesiástico do Estado de São Paulo.

Reynaldo Mapelli Júnior: Promotor de Justiça do MPSP. Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP. Professor do Mestrado Acadêmico em Direito Médico da UNISA. Professor de Direito Sanitário da UNINOVE e em outras instituições. Membro do Conselho Superior e Fiscal do IDISA.




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