Apresentação

A Revista Domingueira da Saúde é uma publicação semanal do Instituto de Direito Sanitário - IDISA em homenagem ao Gilson Carvalho, o idealizador e editor durante mais de 15 anos da Domingueira da Saúde na qual encaminhava a mais de 10 mil pessoas informações e comentários a respeito do Sistema Único de Saúde e em especial de seu funcionamento e financiamento. Com a sua morte, o IDISA, do qual ele foi fundador e se manteve filiado durante toda a sua existência, com intensa participação, passou a cuidar da Domingueira hoje com mais de 15 mil leitores e agora passa a ter o formato de uma Revista virtual. A Revista Domingueira continuará o propósito inicial de Gilson Carvalho de manter todos informados a respeito do funcionamento e financiamento e outros temas da saúde pública brasileira.

Editores Chefes
Áquilas Mendes
Francisco Funcia
Lenir Santos

Conselho Editorial
Élida Graziane Pinto
Marcia Scatolin
Nelson Rodrigues dos Santos
Thiago Lopes Cardoso campos
Valéria Alpino Bigonha Salgado

ISSN 2525-8583



Domingueira nº 13 - Abril 2024

A Insustentável Leveza do Financiamento da Saúde

Por Lenir Santos e Francisco Funcia


O país ao optar por um sistema de saúde de acesso universal – Constituição de 1988 – firmou compromisso político e o dever de sua concretização. O reconhecimento de direito a serviços públicos de acesso universal, exige ação do Estado e recursos suficientes.

Infelizmente o SUS nasceu subfinanciado, dado que os recursos federais que lhe foram alocados eram os mesmos que financiavam os serviços do Inamps, cujo público se restringia aos trabalhadores do regime geral de previdência social. Ao expandir sua base de acesso, seus recursos deveriam ter sidos redimensionados, daí a baliza do art. 55 do ADCT que previa a alocação de 30% dos recursos do orçamento da seguridade social para a saúde até a LDO (1) lhe alocar recursos suficientes. A sustentabilidade do financiamento do SUS em 3 décadas nunca foi alcançada.

A inconsequência entre a teoria e a prática tem mitigado o direito posto que deságua no Judiciário em busca de sua correção. Não cabendo ao Judiciário dispor sobre o financiamento global da saúde, ele impõe ao Estado a garantia dos serviços individuais reclamados, muitas vezes, para além das políticas de saúde, desorganizando mais ainda o sistema de saúde.

O que espanta são as três décadas desse vai e vem sobre o financiamento adequado da saúde pública, com números a demonstrar às escancaras o seu subfinanciamento. Voltar no tempo é o que sempre se faz nos debates como forma de resistência a esse permanente subfinanciamento, sem falar do constante assédio das mídias com a falsa retórica sobre o quanto o piso da saúde impede o saneamento das contas públicas, levando a crença de que cumprir a Constituição faz mal à economia, com afirmações semelhantes à ideia de que a Constituição não cabe no orçamento. Apesar de toda mitigação e constrangimentos fiscais contra garantir à população suas necessidades de saúde nesses 35 anos de SUS, não equacionaram as contas públicas federais até os dias de hoje, evidenciando que o diagnóstico da crise fiscal feitos pelas autoridades econômicas nesse período está equivocado.

Durante esses 35 anos de SUS, nenhum governo enfrentou estruturalmente o (sub)financiamento da saúde – sempre o Ministério da Saúde de um lado e a área econômica de outro, num cabo de aço que sempre arrebenta contra a população que vê suas necessidades não atendidas, o que a leva a desejar um seguro saúde como saída imediata ao seu sofrimento, quando sabemos todos não ser essa a solução, sendo que tal situação serviu de oportunidade lucrativa para o setor privado (que ainda é beneficiado pelas diferentes formas de renúncias de receitas).

Não faltam estudos a demonstrar a insustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) se o Estado (União, estados, Distrito Federal e municípios) continuar a aplicar 4% do PIB, enquanto o gasto privado aumenta já encostando em 5,7% do PIB em 2021 (2).

Os três poderes da República sentem a pressão da insustentabilidade financeira do SUS: o Judiciário com as crescentes ações judiciais; o Legislativo com projetos de leis sanitárias garantindo direito de modo segmentado; e o Executivo (nas três esferas de governo), enfrentando com muita dificuldade, principalmente o aumento de filas, epidemias, agravo de doenças.

Ao invés de se buscar uma solução fundada em estudos técnico-sanitários e econômicos que garantam recursos suficientes para o SUS, vê-se mais uma vez a área econômica do governo e as mídias discutindo o fim do piso da saúde e educação como a solução da questão fiscal brasileira, sem levar em conta primeiramente o que diz a Constituição de 1988, tampouco perguntar quanto o SUS precisa de fato. Esse filme é velho e não é bom.

Para não alongar este texto com a história de 35 anos de subfinanciamento do SUS e ataques ao piso constitucional, um exemplo das ambiguidades que cercam a alocação de recursos públicos à saúde está no piso federal da saúde em 2023, que, na realidade, não ficou definido expressamente.

Ainda que em 2022, a EC 126, de dezembro, articulada politicamente pelo atual governo junto ao Congresso Nacional, antes mesmo de tomar posse, tenha permitido alocar mais de 20 bilhões de reais no orçamento do Ministério da Saúde de 2023, medida essencial para interromper o processo de desfinanciamento provocado pela EC 95, os dilemas governamentais e legislativos da saúde não foram poucos. Vejamos.

1 - A EC 126 rezava que a partir da sanção da lei complementar dispondo sobre o novo regime fiscal, seriam revogados os artigos arts. 106, 107, 109, 110, 111, 111-A, 112 e 114 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pondo fim do congelamento do gasto público e da regra de cálculo do piso federal da saúde da EC 95, que retirou do SUS cerca de 70 bilhões de reais no período de 2018-2022.

2 - Em agosto de 2023, a Lei Complementar n° 200 dispôs sobre o novo regime fiscal sustentável, revogando os artigos mencionados.

3 - Em outubro de 2023, o projeto de lei complementar (Lei Complementar n° 201), que estabelecia regras para as compensações financeiras devidas pela União aos entes federativos, recebeu emenda na Câmara Federal, art. 15, dispondo que no exercício de 2023, para cumprir o piso da saúde de 15% da RCL (3) “será considerada a receita corrente líquida estimada na LOA” (4) - Lei nº 14.535, de 17 de janeiro de 2023.

4 - É bom esclarecer que a Constituição reza que os 15% da RCL devem ser calculados em acordo com a receita realizada no período e não estimada.

5 - Enquanto tramitava a LC 201 no Congresso Nacional, a área econômica do Governo Federal consultou o TCU (5) sobre a data da aplicabilidade do piso da saúde de 15% da RCL: se em 2023 ou se a partir de 2024.

6 - O TCU entendeu que poderia ser exigido somente em 2024. (Observação: houve ainda uma corrente no TCU que entendia ser devido a partir de 1 de setembro de 2023).

7 - No ano de 2023, o piso da saúde ficou na berlinda quanto ao seu valor, tornando-se um piso flutuante entre 147 bilhões a 185 bilhões.

Em outros termos, a polêmica em torno do piso de 2023 pode ser resumida, conforme abaixo (ressalte-se que as propostas representavam valores menores de aplicação mínima federal em relação os 15% da Receita Corrente Líquida da União, constitucionalmente estabelecido):

- Piso da LOA calculado em acordo à Constituição: 185b

**- Piso da LOA calculado pelo artigo 15 da LC 201: 172b **

- Piso consulta-TCU: 147b

- Piso corrente interna TCU: 155 b

- Valor aplicado pelo MS: 182b

A realidade de três décadas fala pelos seus números em relação à insustentabilidade do financiamento da saúde.

- União: aplica 1,6/1,7% do PIB (há três décadas)

- PIB: 4% do PIB - 363b em saúde pública

- Per capita saúde pública: por volta de 1.600 reais (ou cerca de R$ 4,00 per capita por dia)

- Per capita saúde privada: quase o dobro da pública, que é o oposto do que ocorre nos países com sistemas de saúde de acesso universal, em que gasto público está situado entre 60% e 70% do gasto total.

Essa insustentável leveza do orçamento público da saúde, que flutua no ar, resulta em ações e serviços de saúde insuficientes às necessidades das pessoas, o que nos leva a questionar até quanto a insustentabilidade do SUS sonhado pela reforma sanitária.

Enquanto continuamos a mesma discussão de três décadas, a caravana passa: o capital estrangeiro continua sem julgamento pelo STF (ADI 5.435) e sem regulação, assim como as clínicas populares; a precarização dos vínculos dos trabalhadores continuam sempre crescente; as isenções na saúde não são revistas, como merecem; as emendas parlamentares mantém-se desvinculadas do planejamento da saúde; as parcerias e o regime da complementaridade no SUS estão na casa dos 85% dos serviços de médio e alto custo.

É preciso falar com a sociedade e os três poderes da República sobre a vinculação de recursos mínimos da saúde para que o direito fundamental à vida e à saúde seja cumprido de forma satisfatória e o orçamento da saúde possa ser verdadeiramente sustentável.


1) Lei de Diretrizes Orçamentárias.

2) Fonte: Estudo recentemente publicado Conta-satélite de saúde – Brasil: 2010-2021 pelo IBGE, Coordenação de Contas Nacionais, disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/9056-conta-satelite-de-saude.html?=&t=publicacoes - acesso em 11 de abril de 2024).

3) Receita Corrente Líquida.

4) Lei Orçamentária Anual.

5) Tribunal de Contas da União.


Lenir Santos é advogada, doutora em saúde coletiva pela Unicamp, professora colaboradora da Unicamp, e presidente do Idisa – Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política (PUC-SP), doutor em Administração (USCS), professor dos cursos de Economia e Medicina da USCS e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES)/gestão 2022-2024.



Comentários sobre duas recentes publicações da imprensa que podem reduzir o financiamento federal do SUS a partir de 2025

Por Francisco R. Funcia


Comentários sobre duas recentes publicações da imprensa que podem reduzir o financiamento federal do SUS a partir de 2025
Francisco R. Funcia
Duas recentes matérias jornalísticas chamaram a atenção e causaram preocupação:

1) https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/02/revisao-de-gasto-ja-poupou-bilhoes-e-pode-atingir-qualquer-despesa-diz-tebet.shtml

2) https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2024/04/flexibilizar-pisos-de-saude-e-educacao-pode-liberar-r-131-bi-para-outros-gastos-ate-2033.shtml?pwgt=khbp0woonknvhbgv77aea0oaczbnkaxwxe02mu4703t7s7wi&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift

O que parecia ter sido um debate encerrado em 2023 com a polêmica e indefinição quanto ao cumprimento (ou não) da regra constitucional do piso federal do SUS naquele ano (15% da receita corrente líquida da União), voltou agora nos primeiros meses de 2024 com o debate em torno da necessidade de revisar a regra constitucional de cálculo dos pisos federais da saúde e educação para 2025. Como o debate está sendo proposto pelas autoridades econômicas por meio da imprensa, é possível deduzir que o objetivo governamental seja escutar as diferentes opiniões em torno desse tema.

Inicialmente, é oportuno destacar que é muito complicada a forma como a área econômica (Fazenda e Planejamento) tem pautado o debate sobre os pisos da Saúde e Educação desde meados do ano de 2023, como se esses pisos representassem um problema, e não a regra fiscal rígida que foi proposta por essa mesma equipe econômica e que faz parte da LC 200/2023: crescimento anual de 2,5% da Despesa Primária da União.

Essa regra fiscal foi proposta na vigência dos pisos constitucionais da saúde e educação, portanto, nem pode ser alegado desconhecimento. Fazer esse debate pela imprensa é muito ruim, e existem espaços institucionais para esse debate, como por exemplo, no caso da saúde, o Conselho Nacional de Saúde, instância legalmente estabelecida (Lei 8142/90) para cumprir um dos preceitos constitucionais do SUS - a participação da comunidade.

Por que insistir na desidratação financeira do SUS federal, como fez a dupla Presidente Temer/Ministro Meirelles, deteriorada pela dupla presidente Bolsonaro/Ministro Guedes? De 2018 a 2022, excluindo os gastos com Covid, considerados extraordinários, o SUS perdeu 70 bilhões (quando comparado ao valor que seria o piso calculado pela regra da EC86, que tinha ficado suspensa pela EC95). Por acaso, com isso, houve melhora das contas públicas nesse período? O que houve foi uma deterioração das condições de saúde da população nesses mais de 6 anos sombrios, gastando-se abaixo do patamar máximo atingido de gasto federal per capita do SUS pelo governo Dilma no início da década de 2011-2020.

Em termos internacionais, o Brasil aplica 9,7% do PIB na soma do gasto público e privado, segundo recente estudo publicado pelo IBGE, que é o padrão de gasto dos principais países com acesso ou cobertura universal de saúde. Mas, diferentemente desses países, nos quais os gastos públicos estão acima de 60%/70% do gasto total, o gasto público total (soma da União, Estados, Distrito Federal e Municípios) corresponde a cerca de 40% do gasto total (público mais privado) em saúde.

Considerando ainda que 42% do gasto público total em saúde é federal, e que esse gasto público total corresponde a R$ 4,00 per capita por dia, dos quais cerca de R$ 1,60 é do governo federal, cabe uma outra indagação: é esse valor que está impactando o cumprimento das metas fiscais e deteriorando a capacidade de financiamento das políticas públicas federais?

Os municípios já são responsáveis por 32% do gasto público total em saúde, mas para ter essa participação, tem aplicado muito acima do piso de 15% das receitas de impostos municipais e das transferências constitucionais de impostos federais e estaduais - aplicam quase 25%, sendo que muitos municípios aplicam acima de 30%: portanto, não há mais espaço fiscal para aumentar a participação municipal nos gastos públicos em saúde.

Além disso, o governo federal tem capacidade de financiamento maior que Estados e Municípios, pois fica com 57% de toda receita disponível (conceito após as transferências constitucionais de tributos) e dispõe de diferentes instrumentos de política econômica para o financiamento das políticas públicas, diferentemente dos estados, Distrito Federal e municípios.

Por fim, é inacreditável pensar que a área econômica desconhece os efeitos multiplicadores do gasto público em saúde para a dinâmica econômica, que no caso federal abrange o complexo econômico industrial da saúde (tema que foi abraçado no ano passado corretamente pelo BNDES).

O que pretende a área econômica, na contramão de outras iniciativas adotadas pelo atual governo até momento em prol do financiamento do SUS: por acaso seria reduzir os recursos para cumprimento das metas de melhoria da saúde para o conjunto da população, estabelecidas no Plano Plurianual (PPA) e no Plano Nacional de Saúde, conforme as diretrizes fixadas na 17ª Conferência Nacional de Saúde (aprovadas em meados de 2023), outra instância legalmente estabelecida como materialização do princípio constitucional da participação da comunidade no SUS, deslocando esses recursos para cumprir as metas fiscais, que beneficiam principalmente os poucos rentistas que recebem juros da dívida pública?

Sempre é bom lembrar: constitucionalmente, o direito à saúde deve ser “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (art.196). Esse princípio constitucional não está sendo observado pela área econômica do governo com essa proposta de revisão dos pisos federais da saúde e educação, para cumprir uma questionável meta fiscal fixada em lei complementar – não seria mais adequado rever a meta fiscal?


Francisco R. Funcia é economista e mestre em Economia Política (PUC-SP), doutor em Administração (USCS), professor dos cursos de Economia e Medicina da USCS e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES)/gestão 2022-2024.




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